369 – Intermediações de Terras Acidentadas
Filha de um camponês tecelão, irmã mais velha de uma sequência de cinco e noiva do menino aprendiz de seu pai. A família e a pouca bagagem acomodavam-se no carro de boi, pois um cavalo de força capaz de fazer a jornada era demasiadamente caro, que rumava o norte, onde a promessa de melhor vida era feita por um familiar que já teria feito o caminho e se deu melhor, onde, porventura, tinha nascido.
Seguiram por estradas alternativas com a sorte de escapar de ladrões e doenças até o Gargalo. Após o Gargalo tudo mudou. Eles vieram à noite, onde o frio nortenho era puta cativa e até os demônios deveriam se esconder abaixo da terra. Vieram rindo feito hienas e sacudindo suas lâminas como cata-ventos. Eles mataram cada um, de forma bárbara e sem coração. Keira foi levada para as Terras da Tempestade com menos de um ano de idade teve a sorte. Sobreviveu, porém solitária. No entanto a chama de seus olhos a esquentava, a chamava cintilante da promessa de vingança que mais tarde lhe traria uma personalidade única.
371 – Alguns quilômetros de Fosso Cailin
A neve atrapalhava a corrida. Os passos quase não ecoavam quando os pés afundavam no raso branco que cobria a terra. A respiração pesada refletia nas pequenas nuvens emitidas de sua boca em ritmo constante, elas surgiam intensas e depois desapareciam. Aquele era o momento pelo qual ela esperou por dois anos, talvez mais até. Era a hora em que poderia realizar justiça, no entanto, se via obrigada a fugir por sua vida.
A corda do arco estava cortada, rompeu-se com sua última flecha que por melhor que tenha sido apenas resvalou no rosto masculino e bárbaro. Numa luta franca contra dois homens com muito mais força e técnica ela não tinha chances e, longe de seus domínios, onde sua habilidade era o diferencial tudo que podia era fugir e torcer para despistá-los ou conseguir uma posição privilegiada.
- Venha aqui gatinha, não seja tímida. - falou o homem estalando os lábios num som que sem dúvidas não chamaria felino algum.
- Largue de ser burro, só está entregando nossa posição à ela. Vá olhar atrás daquele tronco caído. - Vociferou o outro após emitir um som que deveria ser uma pancada.
Keira estava escondida, paralela à árvore caída, encolhida num buraco no tronco do imponente pinheiro. As mãos cobriam a boca e os olhos observavam sobre apreensão para notar a menor das figuras que surgisse em seu campo de visão. O silêncio era assustador, o silêncio era um eco estridente e incomodante. O coração palpitava acelerado com o som de cascos de cavalos correndo em alta velocidade. Queria fugir com menor vontade de que queria matá-los, mas não conseguia, não conseguia.
Era eloquente pensar que viveu às custas de sua vingança, mas ela perdera tudo, tudo que um dia teve na mão daqueles quatro homens. Seguiu seus rastros até o Norte, treinou corpo e mente, sobreviveu ao frio, caçando para se alimentar e roubando quando necessário. Porém agora se via impotente. Por seu noivo, por seu pai, por sua mãe e por seus irmãos, precisava desesperadamente pensar, mas o único pensamento que vinha era o delírio de se ver estuprada e depois morta.
Os passos cessaram, todos os sons cessaram. Ouviu o grunhido alto de um cavalo, provavelmente vindo da beira da estrada onde tentou emboscá-los. A tensão aumentou e até gotículas de suor começaram a se formar na sua testa. Um frenesi silencioso se formou naquele microcosmo e as imagens diante de seus olhos alternaram entre os corpos sem vida de seus amados com todo o amor e sorrisos que teve em Matabruma até aquele momento onde só o branco da neve reluzia diante de seus orbes castanhos.
Eles surgiram junto do pavor. Risadas histéricas sob os rosto barbado e deformado do ladrão que puxou sua perna para fora do tronco da árvore. Debateu-se, chutou, gritou, mas foi tomada quando o sujeito corpulento a dominou. A barba roçou em seu rosto enquanto as palavras sujas e chulas escapavam da boca de poucos dentes. Ela sentiu as mãos do homem indo de encontro a sua barriga e puxando o tecido de suas vestes, foi quando se viu no iminente perigo de agir ou aceitar aquilo. Abocanhou a orelha masculina com toda força que tivera, tamanha era que podia imaginar seus dentes trincarem se não houvessem encontrado a cartilagem antes. Mordeu e repuxou até a pele ceder e sentir o líquido quente ser derramado sob seu rosto. Um grito de pavor ecoou pela mata silenciosa, um soco acertou em cheio o rosto feminino em meio do desespero. Tonta, mas não abatida Keira sacou a faca da cintura do homem e deixou com que ele caísse sobre a lâmina, trinta vezes. O corpo pesado levou alguns minutos para ser retirado de cima de si. Ele fedia, como se fornicasse e vivesse com porcos, mas a repulsa não era meramente pelo cheiro.
Parcialmente banhada de sangue notou a aproximação de seu segundo perseguidor. O homem levou algum tempo para entender que seu comparsa havia morrido para uma mulher. Ela tremeu segurando o punhal, mas após a primeira morte parecia decidida a ganhar a segunda e tantas quantas fossem necessárias para realizar sua ambição. Segurou fortemente o cabo deixando a lâmina apontada para o solo. O homem fez menção de sacar a espada, e então a brecha se fez.
Espada possuem bainhas de couro por uma razão, a qual o sujeito desconhecia. O metal da espada enroscou-se com o da bainha de aço. Talvez esta fosse justa demais para a lâmina, ou fosse o que fosse, o homem tinha certa dificuldade para retirar a arma. Com o medo batendo à sua porta sua última visão foi o corpo magro e esguio feminino com rosto, peito e pescoço em vermelho rubro saltando sobre si. As pernas de Keira enroscaram na cintura masculina e o punhal provou da carne mais algumas vezes até que quem deveria ser seu algoz estrebuchasse no chão com seu último sopro de vida.
Viva. Assassina. As palavras ecoavam de forma silenciosa em sua mente enquanto a adrenalina pulsante em suas veias diminuía de intensidade. Os olhos arregalaram-se quando compreendeu o que havia feito. Era um caminho sem volta, fato, mas leva algum tempo para se acostumar.
Não chorou, não o fez desde que se despediu de seus familiares. Correu novamente para a beira da estrada onde havia tentado ataca-los. Deparou-se com mais mortes no caminho. Ao centro do que tinha tudo para ser o visual de um ritual maligno havia um homem, não tão velho e nem tão jovem, não tão alto e não tão baixo. Ao centro do corpo do cavalo e dos dois cadáveres do restante do bando de ladrões, esse homem cuja armadura, capa e pele não possuíam sujeira que não fosse da estrada parecia alocar agilmente o escudo redondo em suas costas. O metal da cota de malha conversou com o metal de sua armadura e a brisa sacudiu os cabelos de Keira junto da capa nas costas do homem. Uma flor e três corvos, foi o que ela conseguiu observar na armadura. Eles se encararam.
371 – Pontamarga
Duas figuras conversavam próximos a cantina. Não atraíam atenção das pessoas pelas suas características ou beleza invejável e sim porque gritavam e trocavam golpes no meio da rua. Trocar golpes, em verdade, era um termo muito forte para a cena em questão. O homem escondia-se atrás de um escudo de bronze e madeira enquanto sequenciais pedras eram arremessadas contra si. Uma delas escapou indo de encontro com seu tornozelo. Ele vociferou um palavrão até cair no chão com onde a menina quase mulher continuava a pressioná-lo contra a terra.
A confusão só cessou quando os soldados de lorde Caswell apartaram a confusão. A resolução foi muito simples inclusive, bastou devolver o arco-longo para a menina que tudo se resolveu. Agora ambos estavam sentados no cômodo em que lhes fora gentilmente cedido.
– Você prometeu, Jasper.
– E irei cumprir, só não posso chegar com uma menina aleatória em Jardim de Cima sem as devidas explicações. – a atadura molhada numa solução de ervas era colocada pausadamente sob o galo que formou-se em sua testa. – Me dê alguns dias. Preciso de um mês talvez para explicar como resolvi fazer de uma menina meu escudeiro. Entenda, garota, nunca houveram cavaleiros mulheres, quem dirá escudeiras.
Ao que tudo indicava a dupla seguiu viagem desde o norte, mas agora Keira precisaria esperar em Pontamarga até que Jasper convencesse aos Tyrell e a qualquer outro que era cabível que ela fosse feita aprendiz de cavaleiro. A ideia era péssima e pior que isso só esperar ali, num castelo onde era olhada ou com a mesma curiosidade que olham para um bezerro de duas cabeças ou com o mesmo desejo que olham uma prostituta.
Em todo caso ela parecia ter convencido o cavaleiro juramentado à casa Tyrell de torna-la sua escudeira e assim aprender o ofício. O empecilho, e único por sinal, eram todas as lições e burocracias que envolviam o fato, excluindo-se o preconceito, é claro. Não importava que ela fosse melhor arqueira que muitos cavaleiros, que tivesse matado homens com o dobro de sua força e tamanho ou mesmo que montasse em cavalos melhor que Jasper. Era incrível como um pinto podia abrir portas e sua ausência fechá-las.
– Demore mais de um mês e verá uma garota gritando seu nome nos portões de Jardim de Cima. – deu-se por vencida, mas estava longe de estar satisfeita.
Tão logo ele partiu, coube a ela se esquivar das sequenciais interrupções pela curiosidade mórbida dos homens no castelo e voltar a praticar sua mira com o arco. Por mais incrível que pareça, eles tinham alguma sintonia e Keira sentia uma familiaridade assustadora com o cavaleiro, o que tornava a crença em sua palavra uma comodidade invejante. Um mês era o prazo estipulado entre o abandono da vida como camponesa, vítima de uma chacina e moradora das florestas nortenhas até um futuro que jamais poderia sonhar. Ou então seria um mês que demoraria até roubar um cavalo e escalar os muros de Jardim de Cima se fosse preciso.
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