Vá embora, Kylan. Leve tantos mantimentos quanto conseguir, e nunca mais retorne, meu filho. - Suplicava sua mãe. - Do contrário, sabe o que farão com você. TEM DE PARTIR AGORA! - As palavras ecoavam em sua mente noite após noite, mesmo nos sonhos em que controlava seu lobo. ”Nunca mais retorne. Nunca mais retorne.” As palavras martelavam sua cabeça, como um ferreiro martelava o ferro onde as espadas eram forjadas.

Era apenas um garoto quando tudo aconteceu. Desde muito cedo sabia que era diferente. Não é difícil identificar quando uma criança nasce como um troca-peles, afinal, os olhos totalmente esbranquiçados durante o sono nunca fora algo normal. E o Povo Livre, ainda que admirasse e respeitasse aqueles que conseguiam transferir suas mentes para outros animais, também nutriam um profundo preconceito para com os mesmos. Com Kylan não foi diferente.

Em uma noite fria, como qualquer outra nas terras Para Lá da Muralha, o acampamento festejava o nascimento do mais novo filho de Thyrro, o líder da tribo. A selvageria natural do Povo Livre, aliado com os nervos aflorados de inúmeros cornos de cerveja fermentada, custou a vida de Jhory, pai de Kylan. Era conhecido por sua ousadia, mas também por sua simpatia. Grande parte da tribo o via com bons olhos, diferente do que acontecia com o homem que tinham como líder. Thyrro era duro como os grandes carvalhos congelados e tão irredutível quanto a Muralha.

Naquela fatídica noite, Kylan viu o último suspiro de seu pai. Enquanto bebia sua cerveja e conversava alegre com um dos tantos amigos, dois homens seguraram seus braços enquanto um terceiro esfaqueou-o direto no coração. Acusado de conspirar contra a autoridade de Thyrro, Jhory não teve chance de dizer adeus ao filho e a esposa que deixava para trás. Envolto nos braços da mãe, que chorava e tentava acalmá-lo, os olhos de Kylan tomaram a já conhecida coloração branca, e agora ele enxergava pelos olhos negros de Dentuço, o grande cão marrom da família, ao passo em que sua mente se transferia para a dele.

Corria por entre mesas de madeira espalhadas pelo local, afundando as grandes patas na neve gelada. O ódio o estava cegando, e também o impedia de raciocinar. Tinha um único desejo, um único objetivo. Assassinar o recém nascido filho de Thyrro, e a espessa saliva saltava de sua boca a cada novo passo. Vislumbrou o palanque onde o homem e sua família se encontravam. Com os afiados caninos à mostra, saltou. O focinho captava o cheiro de seu alvo, e já imaginava o gosto de vingança ao ter o sangue daquela criança em sua boca. Até que algo o acertou.

Subitamente, transferiu sua mente de volta ao seu corpo humano, e seus olhos voltaram a ganhar o tom azulado. E então, ali sua mãe proferira as palavras que martelavam os pensamentos dele. ”Nunca mais retorne. Nunca mais retorne.” E desde aquele dia, nunca mais tiveram notícias do garoto.


Aos 20 anos, tendo vivido boa parte deles como um exilado nas imensas e intermináveis florestas, Kylan aprendeu a sobreviver. Por necessidade, aprendeu a manejar o arco e flecha e tornou-se um caçador. Um sobrevivente. A habilidade de troca-peles também havia sido aprimorada, e agora conseguia enxergar através dos olhos de lobos, ursos-da-neve e gatos-da-sombra, ainda que se sentisse frustrado por não conseguir controlar aves. Nas redondezas do acampamento da tribo de Thyrro, diziam que um lobo solitário costumava uivar uma canção triste todas as noites, e o pesar em sua melodia ecoava por entre as árvores e barracas. Era Kylan, e a cada noite que se passava, mais perto estava de concretizar sua vingança.